O Festival TIMELINE:BH ensaia aqui, sem prerrogativas para a dor mutável da libertação do pensamento criativo, na presença ou na ausência de um processo de institucionalização da obra e de seu valor para seus autores e admiradores da imaterialidade entrelaçada pelos arriscados fios conectivos, cognitivos e um esquizo-alívio, entre a afirmação e insistência da autoria e a sombra do anacronismo.
Ao visionário cabe indicar o sonho de um possível retorno, tão difícil para o autor brasileiro que entre o acerto e o equívoco dialoga com o mundo. Esta é a missão principal do TIMELINE:BH, festival originado da cooperação com diversos outros festivais, ao tentar fortalecer imagens e pensamentos fundantes do contemporâneo imaginário eletrônico e cinematográfico do cenário neobarroco mineiro (aquele que é próprio de Minas Gerais, estado federativo brasileiro).
O TIMELINE:BH surgiu de uma provinciana discussão de comentários anedóticos sobre sermos barrocos, narrativos e propagadores de “videoarte”, uma espécie de polo cultural, muitas vezes citados em meios curatoriais. Muitos replicam que “somos apenas solidários no câncer”. Se pensarmos assim, o Brasil está em um estado de metástase neofascista. O momento presente necessita da prescrição de antídotos para a defesa do que é humanitário. O artista pensador é a vanguarda no esforço poético para a provocação de boas mudanças.
“porque gastamos nossas asas e findamos por enferrujar
de casa a gente sai, mas não volta
sonhei que eu voltava pra casa
de costas
mais morto do que vivo
ainda mais torto e sem juízo
de costas
mas voltava pra minha casa”
(Sérgio Rubens Sossélla - publicado em panfleto, 1989, Brasil)
Os autores Gregório Camilo e Fernanda Magalhães Ferrari (2019), iluminados pela poesia do saudoso e pouco conhecido poeta brasileiro Sérgio Rubens Sossélla (1942-2003), definem muito bem as inquietudes dos pensamentos referentes à linguagem e ao processo de criação das obras inomináveis das artes eletrônicas imagéticas.
Aqui se aproveita a representação fulgurante de múltiplos mundos e realidades compartilháveis. Também se inicia a revisitação de uma América Latina imaginária, com “Bicho”, do autor Filipe Bittencourt (2016) e sua atmosfera esquizoide, que institui um clima sombrio no interior de nós mesmos, de algo que nos habita e nos limita, mesmo que haja resistência dos espasmos no corpo, o corpo que habita uma arqueologia, casa, corpo, origem.
Em “Metamorfose”, de Arlen Costa de Paula (2019), volvemos a nuances pictóricos de glits guardadas por uma sonoridade linear aristotélica, e assim o autor reconstrói o caos.
Somos a somatória dos arqueos – arquétipos - do grego ἀρχή - arché: "ponta", "posição superior", "princípio", e τύπος - tipós: "impressão", "marca", "tipo" – audíveis e indizíveis. Em Música Infernal – 3 cena, de Cecilia Cavalieri (2019): reflexos fragmentados da duradoura realidade reacionária que assola o Brasil tanto quanto outros estados nacionais, imagens são transpostas em decodificações midi, uma a uma transcrição agoniada pelo advento de ser e estar no Brasil presente.
Estamos às voltas com a defesa dos pilares do Iluminismo. Como ser liberal ou comuna em um estado que se despeja aos abismos das humanidades mais mesquinhas?
Mas é preciso aliviar. Limitados ao litoral, precisamos buscar o alívio ultramarino, quer seja a África, quer seja o oriente, quer seja a tão amarrada e denunciada nossa herança eurocêntrica. Enfim, no idílio de tantas obras políticas como a de Naiana Magalhães, em “Risca Delirante” (2018), buscamos harmonia e calmaria numa ensolarada tormenta.
Buscar paz e conforto em meio às crueldades barrocas latinas talvez tenha levado a décadas de árduo convívio e autoaprendizado. Nosso ilustre convidado, o argentino Claudio Caldini, clareia nossas realidades com minimalismos de uma sofisticada alusão pictórica abstrata geométrica em “4:4 C” (2017). Muitas vezes, Caldini acena ou indica uma purificação estética que alivia o sofrimento, e nos convida para uma calmaria contemplativa.
Barroco, demasiado barroco, é também o Brasil que conhecemos, em “Feito Não Fantasia Careta”, de José Paulon (2018). O autor expõe em seu espaço privado, que para muitos pode parecer precário, mas com sua obra reafirma-se “vivo!”, a realidade predominante no holocausto social brasileiro. Somos o que soamos ser. Mesmo que uma elite econômica se rejubile alheiamente, fingimos e somos, depois já não somos mais que registros e imaterialidades imagéticas.
Marie Carangi em “Teta Lírica” (2016), estabelece paralelos de síntese, irreverência, autoafirmação e militância feminina, executando uma música abstrata com a movimentação de seus seios na realidade arquitetônica oficial do cruel estado brasileiro cimentado às curvas da Nova Bauhaus, tão revisitada por essa arquitetura: emblemáticos estudos espaciais e acústicos da arte oficial do estado de ferro, cimento e horror brasileiro. A vida passa pelas ondas sonoras e eletromagnéticas de Marie, a provocadora de um Brasil que jazz muito cimentado. Marie não se reduz nem se petrifica.
O feminismo fez escola na arte e na performance. Vozes antes inaudíveis hoje são escutadas, não mais silenciadas, e isso ainda pode ser incômodo aos olhares áridos. Mas é um fenômeno desde muito tempo latente. “Mergulho”, de Dayane Tropicaos (2014) trata-se de um ótimo exemplo da profusão criativa feminina na contemporaneidade, mesmo que muitas pessoas mulheres sigam sendo asfixiadas. A artista segue coerentemente em suas minuciosidades estéticas que existem entre ser e estar impulsionado pela dinâmica da transformação cultural.
Enigmática e singular representação do feminino ganha vida iconoclasta no autorretrato “Renascentista”, de Flávia Coelho (2018), onde sua autoimagem duplicada e replicada em um segundo quadro filmado em tubo de tv e seus raios catódigos, em silêncio reverbera o lirismo presente em Cecilia Cavalieri, Naiana Magalhães, Marie Carangi e Dayane Tropicaos. Essa representação ganha também vozes “apropriadas” em “Period”, de Samy Sfoggia (2019), que ressignifica dizeres íntimos da feminilidade com colagens digitais figurativas em um espaço privado. E ainda “Huevita” (nome carinhosamente feminizado com o diminutivo de da palavra “ovo” em espanhol), de Carol Botura (2016), nos apresenta uma realidade de espaço privado onde uma menininha em um mercado de ovos se esconde e nos convida a um conforto possível, o conforto que encontramos quando reconhecemos nossas origens e nos protegemos em nossos abrigos, mesmo que frágeis.
“a mãe morta (eu sei)
cuidará de mim perguntando
se parece comigo aquele que veio
pra embalar minha ausência no colo gasto
pra beijar saudades com seus lábios mortos
ninguém volta (o mesmo) pra casa
mas agora nem comigo mais eu me esbarro”
(Sérgio Rubens Sossélla - publicado em panfleto, 1989, Brasil)
“Ninguém volta pra casa”, de Gregório Camilo e Fernanda Magalhães Ferrari (2019), exibe um tipo de apreciação visual e emocional que muitos carregam em seu íntimo. A apreciação da geografia de dentro de uma casa fortalece em quem a vê a impressão de que, mesmo estando em casa, nunca voltamos. Ou que, habitando nossa origem, vemos a vida seguir como um ponteiro de relógio: cabras passam pelos arredores semelhantes a toda terra verdejante, em uma vida que se renova em incontáveis seres, mas a câmera ou os olhos que veem não são vistos, tudo se passa no exterior de uma escura habitação, seguem os utopos que iluminam salas e galerias, dispositivos móveis, lugares que transformam espaços em outros lugares, uma paisagem óbvia, uma experiência emocional compartilhável. E assim seguimos derramados em reflexos de olhares em escuros abissais, negando a ausência e superando a morte.
Somos formados de tantas matrizes que ao vermos quem somos nos perdemos na terra e tentamos alcançar as infinitudes. Isso está presente em “Iroko de Bom Jesus”, de Paulo Nazareth (2017), o homem que foi a pé do Brasil aos Estados Unidos e, em seu caminho, se vendeu parodiando aqueles que são comprados pelas nossas matrizes culturais mais ricas e/ou colonialistas no estrangeiro. Nazareth busca a simplicidade, um orixá, um lugar seguro em uma árvore que sustém uma casa, abrigo e origem.
Na arte eletrônica, não raro obra e vida se misturam num processo de acerto e erro; a simbiose entre suporte, obra e autor perpassa o caos. “Analogia Orgânica” de Rafael Fernne (2020), revisita Piet Mondrian e Kazimir Malevich, com glits imagéticos e sonoros, numa cadência de controle e descontrole do caos eletrônico. Nada contemplativo, também revisita seus próprios horrores, simpatias, antipatias e apatias como quem cria, contempla ou insiste.
Casa, origem e impermanências figuram nos cotidianos de qualquer povo, etnia ou nacionalidade. O primordial é materno. A placenta atenua os agudos e nós ficamos ritmados ao bater dos corações mais próximos de nossos ouvidos no tempo uterino de nossa vivência: nossos corações e o coração materno. Saímos do conforto para um abrupto viver. Crescemos e seguimos em equivocadas humanidades. Escutamos dizeres de atos e fatos “desumanos”, demasiadamente humanos. “Matriarcal”, de Nicolly Rejaira (2019), autobiografia do núcleo familiar da própria autora, segue em uma relação de espaço, tempo e memória, negando as leis da física com afetos, relações interpessoais familiares e vivências cotidianas de uma típica casa de latino-americanos: tempestuosos rumores televisivos, políticos e religiosos; singularidades étnicas de um espaço privado. Assim seguimos hoje atordoados, antes que, definitiva noite, a morte nos consuma.
Aqui no TIMELINE:BH costumamos dizer: não é porque é experimental, performance ou videoarte que precisa ser feio ou cansativo, mas que seja transformador. E assim estamos caminhando para nossa sexta edição como festival estabelecido. A beleza está na transformação do indivíduo que assiste ou que exibe. Entre o insight e o fazer, rebuscamos obcecados por formas e procedimentos técnicos.
Existe luminescência em imagens e pensamentos de autores em todo lugar, seja qual for a realidade aparente transcriada em patrimônio cultural imaterial. Sempre haverá morte mesmo que o futuro seja o teletransporte.
Curador I TIMELINE: BH FOCUS – VIDEOFORMES 2020
Carlosmagno Rodrigues
01 - BICHO (CRITTER) - Felipe Bittencourt - 2min. - 2016 - Brasil
02 - MÚSICA INFERNAL – 3 CENAS - Cecilia Cavalieri - 1min. - 2019 - Brasil
03 - METAMORFOSE - Arlen Costa de Paula Brasil - 6min - 2019 - Brasil
04 - RISCA DELIRANTE - Naiana Magalhaes, 2018 - 2MIN.37 - Brasil
05 - 4:3 C - Claudio Caldini - 2017 - 2MIN.52 – Argentina
06 - FEITO NÃO FANTASIA CARETA -José Paulon - 39SEG. - 2018 - Brasil
07 - TETA LÍRICA - Marie Carangi - 4MIN51 - Brasil
08 - MERGULHO - Dayane Gomes - 1MIN9 - Brasil
09 - RENASCENTISTA - Flávia Coelho - 2018 - 2MIN. - Brasil
10 - PERIOD - Samy Sfoggia - 2019 - 1MIN15 - Brasil
11 - HUEVITA - Carolina Botura - 2016 - 1MIN30
12 - NINGUÉM VOLTA PRA CASA, DE SÉRGIO RUBENS SOSSÉLLA - Gregório Camilo and Fernanda Magalhães Ferrari -2019 - 2MIN.20 - Brasil
13 - IROKO DE BOM JESUS - Paulo Nazareth - 2017- 4MIN.17 - Brasil
14 - ANALOGIA ORGÂNICA - RAFAEL FERNNE - 1MIN.30 - BRASIL
15 - MATRIARCAL - Nicolly Rejayra - 9MIN. - 2019 – Brasil
Festival 2020 : 12 > 15 mars | Expositions : 12 > 29 mars
Evénement Facebook VIDEOFORMES 2020 : urlz.fr/bzQD
VIDEOFORMES | Digital Arts
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